Resgatar as minhas memórias do Facebook vem sendo divertido. Encontro postagens de doze, onze anos atrás sobre Lana Del Rey: quando lançou os singles Born to Die e Blue Jeans, Lust for Life e Love. Quando saíram as fotos dela com aquele salafrário, o namorado italiano (até foi capa temporária da minha curadoria no Spotify, graças a uma ex-situationship). Enfim, divido a minha vida em fases de Lana. Em Born to Die, ia ao salão de beleza e pedia o meu cabelo real up, beauty queen style. Em Ultraviolence, pintei os cabelos castanhos, comprei uma jaqueta de couro e só usava camisetas brancas com calça jeans. Em Honeymoon, um cabelão de aplique e uma camisola transparente. A minha rinoplastia e os 2ml de preenchimento labial? Adivinhem.
No início, eu ainda era jovem. Dezessete para dezoito anos, mas metida a sabichona, gostava da estética vintage de seus vídeos caseiros, da emulação de Jackie O Gangsta, dos ares depressivos de uma mulher que já havia dito que lia Sylvia Plath. Uma garota branca com diagnósticos que passou imune ao Tumblr, em plena adolescência circa 2012, é uma guerreira. Agradeço imensamente por essa fase, principalmente por tê-la conhecido dessa maneira – se antes era uma brincadeira terapêutica, um fanatismo fomentado pela companhia fantasmagórica de uma de nós, hoje consigo entender suas letras com maior profundidade.
Meus amigos acham engraçado quando eu digo que ela merece um Pulitzer, um Nobel. Fingertips, poesia musicada por Jack Antonoff, é uma obra-prima. E, neste mês, finalmente saiu a tradução para português de Violet Bent Backwards Over the Grass, seu primeiro livro. Aqui, no Brasil, saiu pela Editora Belas Letras (R$ 79). Há quem faça pouco caso, dizendo que são besteiras “aleatórias” que se aglutinam sem sentido algum, no meio de imagens bonitas da própria cantora e de artistas que acompanha. Eu discordo, ok, sou suspeita para falar. Hoje, recapitulando algumas questões da lírica moderna e a grande influência de poetas como Walt Whitman e Allen Ginsberg no trabalho de Lana Del Rey, venho fazer algumas considerações sobre a genialidade de uma diva pop que transita entre o ame-o ou deixe-o do American Dream. Se for pra discordar, que seja trazendo informação!
A lírica moderna é fascinantemente Lana Del Rey. Mallarmé e seus contemporâneos – como Verlaine, Rimbaud e até mesmo Baudelaire – enxergavam a poesia como música, explorando a sensorialidade autossuficiente comparada a um conteúdo “direto”. A prioridade para a corrente simbolista, a ideia de que a poesia deve imitar o modo como a música age sobre a alma — com fluidez, emoção e mistério –, não fica de fora de Violet. A forma diluída, sugestiva, sensual e mística se afasta de um discurso lógico. Ora, por que Lana Del Rey escreveria uma historinha? A música, assim como a poesia, afeta o leitor não pela razão, mas pela sugestão e, sobretudo, pela sonoridade. Se o trabalho de linguagem é feito com maestria, a última coisa que devemos nos preocupar é com o literal. A sugestão, a aura da poesia, é o que importa. Entender não é prioridade: o erotismo da arte vive, assim como em Susan Sontag. Outro exemplo, mesmo com a linguagem mais concreta, é Carlos Drummond de Andrade. D-i-v-o. No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho? Que pedra é essa? Cor, tamanho, textura? Não se explica, ela é sugestiva, metafísica, um símbolo. O modernismo nos deu uma atmosfera rarefeita e um vazio fértil – podemos falar sobre nada de uma maneira muito bonita, usar o silêncio como linguagem, sugerir um mundo através da poesia. Lana nunca falou de Mallarmé e de Baudelaire, até onde sei. Suas referências literárias principais fazem parte da poesia beatnik; especialmente Allen Ginsberg, que chegou a dizer que ouvia a voz de Walt Whitman enquanto escrevia. Estes dois homens são fundamentais para o seu repertório desde Born To Die, onde Body Electric reina como uma das melhores faixas do álbum, e Tropico, cujo interlúdio segue estrofes do poema Howl.
Assim, em Ginsberg, Whitman aparece assim:
“What thoughts I have of you tonight, Walt Whitman, for I walked down the side streets under the trees with a headache self-conscious looking at the full moon.”
E em Lana, muito simplificado, vejo-o aqui:
I love u
But u don’t understand me
You see
I’m a real poet
My life is my poetry
My lovemaking is my legacy
Walt Whitman rompeu com a métrica tradicional chatérrima — ele escreveu em vers libre, longamente, com cadência quase bíblica, como um fluxo de fala, um poema gigantesco chamado Leaves of Grass. Chega de Robert Frost e a Nova Crítica. Queremos uma explosão de sentimentos, queremos uma libertação do puritanismo do austero culto de vida anterior, queremos um confronto direto com quem impede as nossas vontades. Sem pontuação rígida, assim como Del Rey, tudo se faz rápido, contínuo, improvisado, aleatório, como uma apresentação de jazz em que o que importa é o arrepio no pescoço. Nosso corpo fala por si próprio quando lê ou escuta Lana Del Rey porque ela sabe, meticulosamente, o que está fazendo: está evocando Whitman, Kerouac e Ginsberg, seus antepassados. As suas viagens internas e externas podem parecer triviais, mas a sua poesia é revelação, vai a caminho do sagrado no ordinário, nos sentidos que o mundano pode nos proporcionar. Lana, inclusive, brinca com o sagrado o tempo inteiro. Ela mesma sabe que é a líder de um culto, afinal de contas.
A thing perfect and ready to become a part of the texture of
the fabric of something more ethereal
Like Mount Olympus
Where Zeus and Athens and the rest of the immortals play
(!!!!!!!!!!MÃE!!!!!!!!!!!)
Minha última leitura, Personas Sexuais, de Camille Paglia, dedica um capítulo a Walt Whitman e a sua celebração da rebeldia e espiritualidade em tudo, inclusive no vazio. Superando Wordsworth e Coleridge em suas tentativas de fusão entre cultura e natureza, Walt Whitman brinca com a sensualidade da Grande Mãe ao criar um Homem-Mulher Universal. Nas palavras de Paglia, como Keats, “ele imita a extensão de dionísio por todos os “Muitos” maduros do mundo (…) não deve haver isolamento apolíneo: intimidade ou pureza são retalhos estéreis, separando-se do todo. O democrático Dionísio amplia o significado a lixo, aparas e raspas”. O mundo é mais do que o homem judeu-cristão: há homens dionísicos, cujos inconscientes põem tudo em movimento no fluxo da natureza. Haja sensibilidade.
E, assim, aparece em Violet Bent Backwards Over the Grass:
I went to a party
I came in hot
made decisions beforehand
my mind made up
things that would make me happy
to do them or not
Each option weighed quietly
plan for each thought
But then I walked through the door
past the open concept
And saw Violet
bent backwards over the grass
‘7 years old with dandelions grasped
tightly in her hands
arched like a bridge in a fallen handstand
grinning wildly like a madman
with the exuberance that only doing nothing can bring
Waiting for the fireworks to begin
and in that moment
I decided to do nothing about everything
forever.
Camille Paglia carinhosamente apelida Walt Whitman de “decadentista americano”, inventando a mãe natureza em um “ciclo ondulante de nascimento e morte empanturrado de objetos e personas”. Se vocês já assistiram ao filme Tropico, de Lana del Rey, sabem exatamente do que ela está falando – Whitman e Ginsburg aparecem por lá. Paglia, uma doida de carteirinha, definiu Leaves of Grass como um texto com mensagem hemafrodítica, em que o poeta tem que superenfatizar sua masculinidade para rever o próprio sexo na pulsante natureza feminina de sua poesia. Lana del Rey traz um verdadeiro erotismo e voyeurismo no mesmo sentido, e é decadente como ele. Sua poesia trata de um desejo enterrado há anos por um país tabula rasa, tido como sem tradição, motivo de chacota por Oscar Wilde, and so on. Na tentativa de encontrarem no conservadorismo uma criação de um imaginário proporcional às suas megalomanias, a crítica jamais aceitará Lana Del Rey como cânone. Se continuar assim, é claro. Enquanto explora a exaltação de ícones como Marilyn Monroe e Elvis Presley, Lana Del Rey nos leva ao fim do sonho americano, à violência, à exploração, ao vazio que ele nos proporciona. Em Tropico, Deus aparece e começa a narrar o poema de John Mitchum, "America, Why I Love Her?" ("Você me pergunta por que eu a amo? Bem, me dê um tempo. Eu explico. Você já viu um pôr do sol no Kansas ou uma chuva no Arizona?”). John Wayne, símbolo másculo do ímpeto americano, aguarda os pé-rapados no Paraíso. Lana também parece não ter uma resposta racional sobre qual é a sensação de se sentir americana, cosmopolita, uma persona sexual, um objeto cultural. Em toda essa sensibilidade, essa espiritualidade não ortodoxa, esse culto à natureza, as provações que o país a coloca parecem pouco frente à beleza. Desde sempre, penso que essa é a prioridade de sua obra: o belo. Aparentemente, ele emerge na decadência, e não há nada mais estadunidense que isso.
A cantora Letrux, em sua resenha para a revista Quatro Cinco Um, destaca a atmosfera onírica que Del Rey constroi junto a paisagens próximas: na suspensão proposta pelos poetas modernos, pouco importa saber onde fica o Monte Rushmore. É o que ele significa ali, para o eu-lírico desafiador, que nos arrebata, nos coloca em Dakota do Sul ou no letreiro de Hollywood. Letrux ressalta: há “estrofe, refrão, ponte (...) Às vezes o refrão retorna depois da ponte, às vezes a outra estrofe muda algumas palavras, mas não necessariamente. Lana também faz ponte sobre a grama”. A natureza junto a um coração partido, sendo que, para Camille Paglia, as duas coisas virtualmente significam a mesma coisa. Enquanto retoma o glamour decadentista norte-americano, Lana brinca com o som atordoado da Nação Perfeita e o silêncio dela, parte de uma solidão compartilhada em meio às festas de arromba no Chateau Marmont. Na única fotografia que contém o seu rosto (Figura 1 deste texto), parece feliz em frente à bandeira americana, também presente em clipes como Ride e National Anthem, my personal favourite, onde recria a família Kennedy com o rapper A$AP Rocky – aparentemente o motivo pelo qual ela e Azealia Banks se estranham até hoje. Ela sorri, mas é tudo agridoce. A bandeira balança, como uma sombra eterna em sua existência. Em tudo que escreve, deve lembrar-se do hino nacional: And the rocket's red glare / The bombs bursting in air / Gave proof through the night / That our flag was still there.
Esta é a mulher que fez uma bruxaria para Donald Trump, a poeta norte-americana Elizabeth Woolridge Grant.
I AM FUCKING CRAZY. BUT I AM FREE!!!!!!!!!!
Obs.: neste ano, sai um livro com um capítulo escrito por mim sobre a intertextualidade em Violet, em especial no poema Bare feet in linoleum. Começa mais ou menos assim: “Stay on your path Sylvia Plath/don’t fail away like all the others”. A fotografia escolhida por Lana del Rey? Um forno de cozinha com um buquê de flores. The Tumblr girl in us lives on.
Obs. II: espero que a tradução faça jus à Laninha. Para Letrux, sim. Comprem o livro e me digam!